19/07/2010Fonte: Scot Consultoria -
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Por Fernando Sampaio
Engenheiro Agr?nomo formado pela ESALQ/USP, especialista em mercado de carnes pela ESA Angers. Pensador em tempo integral, cronista nas horas vagas.
Tempos
atr?s, era costume das fam?lias rezar antes das refei?es. Sim, rezar para
agradecer o alimento recebido. Luiz Felipe Pond? diz que muitos te?logos, sejam
eles judeus, crist?os ou mu?ulmanos afirmam que a ?nica teologia verdadeira ?
aquela que agradece.
Os americanos, estes porcos imperialistas, t?m at?
um dia especial no ano para agradecer a Deus n?o s? pela mesa farta ? sua
frente, mas por tudo o que receberam.
N?o custa lembrar, os per?odos de
colheita em toda a hist?ria da humanidade sempre foram celebrados em
festividades religiosas, como at? hoje ? o caso das nossas festas juninas.
Infelizmente, nos dias urbanos e de fast-food em que vivemos, comendo ?s
vezes at? de p?, damos nossas refei?es por garantidas.
Nossas crian?as
acham que o leite nasce dentro da caixinha tetra-pak e o bife ? espontaneamente
gerado em bandejas de isopor. Achamos que a comida vem do supermercado, que
sempre estar? ali, repleto de queijos j? prontos, manteiga j? batida, carne j?
desossada, frutas j? cortadas, e saladas j? lavadas, al?m de todo o assortiment
de guloseimas pr?-fabricadas de composi??o indefinida prontas a garantir a nossa
obesidade.
N?o temos mais id?ia do que ? o trabalho de plantar, colher,
cuidar, ordenhar. E por incr?vel que pare?a, nos esquecemos de agradecer tamb?m
quem faz esse trabalho por n?s.
S?o produtores rurais, estes
impressionantes personagens que entendem um pouco de terra, um pouco de ?gua, um
pouco dos ventos e das chuvas, das plantas e dos animais, e ainda precisa
entender de dinheiro.
Vou falar de um Produtor Rural.
H? muito tempo
seu pai lhe levou para aquelas paragens. O governo dizia para migrarem, para
derrubarem a mata e assim teriam terras.
Dormiam em casa de pau a pique,
teto de palha e ch?o batido, lampi?o de querosene e fog?o de lenha. Abriram
mata, semearam e colheram. Criaram bois. Deu certo. Ele, que era menino, virou
Produtor Rural.
O Produtor Rural n?o estudou, ? fato, embora tenha feito
todo o esfor?o do mundo para que seus filhos pudessem ir ? faculdade. Mas n?o ?
ignorante. Conversa com gente nova, aprende coisas. Melhora sua planta??o,
compra m?quinas. Usa adubos, sementes, insemina o gado. O que ele produz hoje na
mesma fazenda ? com certeza bem mais do que seu pai produzia. Ele e outros,
mesmo sem saber sustentam a economia de todo um pa?s.
Mas anos depois
aparece um fiscal do governo em suas terras. Diz que ele est? ilegal porque
plantou caf? no morro e n?o pode. Aplica uma multa porque na beira do rio onde o
boi bebe ?gua deveria estar cercado, e no ?corguinho? que passa na fazenda devia
ter 15 metros de ?rvores dos dois lados, embora ele explicasse que quando foram
para l? ningu?m lhes falou dessas regras.
Aparece outro fiscal, e lhe d?
multas porque ele deveria por banheiros para seus empregados l? no meio da ro?a,
como se ele algum dia tivesse tido esses luxos. E outra multa porque seu
tratorista come sua marmita debaixo da ?rvore quando deveria ter um refeit?rio
para comer.
Outro dia vem um outro rapaz estudado, e diz que seus bois
deveriam ter brinco, e que cada uma deveria ter um documento de identidade. Diz
que os europeus est?o preocupados com isso e querem os brincos porque ? mais
saud?vel. O Produtor Rural n?o entende muito bem porque para ele mais saud?vel
que aquele boi seu que passou a vida ali no pasto n?o existe, e se pergunta se
boi europeu tem aquela vida boa. Mas vai na dele e p?e brinco em tudo. Depois
lhe dizem que as regras mudaram, e o que ele fez precisa ser refeito.
A?
aparece um outro cabeludo, com sotaque de gringo. Fala que quer preservar a
biodiversidade, que o mundo todo est? muito preocupado e diz que se ele plantar
?rvore um dia vai receber por aquilo. Mas quem ? da ro?a desconfia, e
normalmente se ? pra fazer servi?o quer ver a cor do dinheiro antes. Ele
pergunta ao mo?o se no pa?s dele tem muita mata, e ouve que n?o, e que ? por
isso que ele devia plantar mais ?rvores ali.
Uma mo?a toda arrumada diz
que ? do supermercado, e vem falando coisas bonitas como paradigmas,
sustentabilidade, mudan?as clim?ticas, e diz que o consumidor est? muito
preocupado, e lhe d? um manual de regras pra seguir.
Um outro rapaz de
sand?lia de couro e bolsa de tric? diz que ? da ONG, e traz um calhama?o de leis
que o Produtor nem sabia que existiam. Diz que a sociedade est? muito
preocupada, porque quase todos os Produtores s?o ilegais e ele n?o deveria
continuar assim.
A? aparece um doutor do Governo, diz que tem que zelar
pelo bem do Pa?s e pela Constitui??o, e que o Produtor deve assinar um papel e
ajustar sua conduta, que ele n?o sabia que estava desajustada. E se ele n?o
assina n?o pode mais vender nada para ningu?m.
Uma outra mo?a, cara de
francesa, chega e fala que est? muito preocupada l? onde ela mora porque o clima
do mundo est? mudando, e ela diz que as vacas dele est?o esquentando o mundo. O
Produtor se espanta e d? risada ao perguntar como.
Um outro doutor,
estudado, diz que a fazenda dele ? na verdade terra dos ?ndios, e que est?
preocupado com os ?ndios porque n?s matamos quase todos eles, que eram os donos
do Brasil. Tem ?ndios ali perto, j? donos de bastante terra. O Produtor viu uma
vez o governo construindo casas para os ?ndios, e dando cestas b?sicas aos
?ndios dali. E viu o material de constru??o das casas sendo vendido na cidade, e
as cestas trocadas por pinga.
A? aparece um padre, com uns ?ndices na
m?o. Diz que o produtor n?o produz o que est? escrito ali, e que portanto a
terra dele devia ser dada para quem precisa. O padre est? muito preocupado com
os exclu?dos. O Produtor pergunta quem s?o os exclu?dos, e reconhece ali um povo
que nunca trabalhou em ro?a. Tem gar?om, ajudante de pedreiro, tem at?
funcion?rio p?blico. E ele v? esse povo recebendo dinheiro do governo todo m?s.
E se pergunta se o exclu?do n?o ? ele que paga um monte de imposto e ainda tem
que pagar escola para os filhos, seguro sa?de e ainda anda em estrada
esburacada, sem receber dinheiro nenhum do governo de volta.
O Padre
volta com outro doutor, que quer que ele prove que um dia no passado o governo
realmente fez um papel dizendo que aquela terra era do seu pai. O Produtor pensa
que se o governo durante esse tempo todo cobrou impostos dele por aquela terra ?
porque sabia que era dele, ou n?o?
A? o Produtor vai no banco, quer
emprestar para investir e produzir mais, plantar ?rvore. E um gerente do banco,
que diz que est? muito preocupado com o planeta e o clima diz que s? empresta se
ele cumprir todo um outro livro de regras. O Produtor se pergunta se o dono do
banco sabe se o dinheiro que est? ali vem de drogas, de jogo, de corrup??o de
pol?ticos, de venda de madeira ilegal. Mas se cala e desiste daquilo.
Ent?o o Produtor vai dar uma volta na cidade. Ele v? favelas nos morros
de tudo quanto ? jeito, e depois v? na TV que o morro desabou na chuva e um
monte de gente morreu e se pergunta se o mo?o que disse que n?o podia plantar no
morro tinha ido l? ver aquilo. V? um monte de esgoto sendo jogado no rio e se
pergunta se o doutor que queria zelar pelo bem do Pa?s foi atr?s de quem fazia
aquilo. E v? no jornal que o chefe do fiscal que lhe havia multado foi preso por
tr?fico de madeira. Vai no supermercado, e em sua economia simples faz uma conta
e v? que o quilo de carne vendido ali custa quase dez vezes mais o que ele
recebeu pelo boi, embora ele tenha ficado tr?s anos cuidando do bicho e o
supermercado tr?s dias cuidando da bandejinha. E v? o povo comprando o que ?
mais barato mesmo, e se pergunta se tudo o que est? ali segue as regras que a
mo?a arrumada lhe deu para seguir.
O Produtor come?a a desconfiar que
aquele povo todo preocupado que foi na sua fazenda est? preocupado mais ? em
justificar os pr?prios empregos uns aos outros. Todos tem trabalhos t?o bonitos,
? consultor disso, coordenador daquilo, empresa de governan?a, ONG de
sustentabilidade, tem at? uns cargos em ingl?s que ele nem sabe o que s?o. Ele ?
do tempo em que voc? sabia o que a pessoa fazia. Era o a?ougueiro, o pe?o, o
padeiro, o sapateiro... Ent?o ele decide que n?o quer fazer mais nada daquilo.
Chamam-no de turr?o, ignorante, reacion?rio, desconfiado, atrasado.
Dizem que ele n?o quer se adequar aos novos tempos, n?o entende como funciona o
mundo, n?o liga para a natureza e nem para a sociedade. Logo ele que passou a
vida aprendendo como a natureza funciona e que faz comida para esse povo todo.
E o Produtor vai l? para o seu fim de mundo, em uma estrada esburacada e
esquecida, escutando no r?dio que o copeiro do Pal?cio ganha R$ 9.000 reais por
m?s, e que mais algu?m havia sido pego com dinheiro na meia ou na cueca.
Apesar de tudo continua produzindo.
N?o, n?s n?o agradecemos
pela comida. N?s pegamos quem a produz e colocamos no cantinho da sala,
ajoelhado no milho, com um chap?u de burro na cabe?a. N?s pegamos o Produtor,
lambuzamos ele de piche e jogamos penas de galinha em cima, fazendo-o perambular
pelas ruas da cidade. Podemos tamb?m coloc?-lo numa gaiola para que seja cuspido
e apedrejado por quem passar.
Ou, melhor ainda, vamos costurar uma
Estrela de Davi nas roupas de todos eles, para podermos identific?-los bem. Como
est?o quase todos na ilegalidade, poderemos coloc?-los todos fechados em um
campo de concentra??o. Ent?o ser? f?cil tomar essas terras e a? sim poderemos
produzir como se deve, deixando o mato crescer, a Terra esfriar e todos os
?ndios e animais felizes na floresta.
Eu sempre tive um respeito nato
por quem produz, simplesmente pelo her?ico ato de produzir.
Hoje, meu
respeito ? tamb?m pelo her?ico ato de resistir. Resistir a uma sociedade
obcecada pelo controle da vida alheia em todos os aspectos. Resistir a uma
relativiza??o de direitos b?sicos de toda sociedade democr?tica. Resistir ao
despotismo estatal. Resistir ? ditadura de minorias. Resistir ao globalismo
ecol?gico. Resistir a uma Justi?a parcial. Resistir ? centraliza??o de poder.
Resistir ? delega??o de responsabilidades. Resistir em suma ao fascismo que se
desenha em nosso futuro.
Sei que ? luta ingl?ria e que fatalmente a
Resist?ncia cair?. Mas tenho meu respeito declarado e minhas armas ? disposi??o
da luta.
E hoje rezo n?o s? para agradecer o prato de comida ? minha
frente, mas para pedir que ele continue aparecendo sempre.