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A lição que os agricultores Argentinos nos dão.

31 de março | 2008

A crise na Argentina


Duas coisas surpreendem na primeira grande crise interna que a presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, vem enfrentando há duas semanas e desde sexta-feira caminha para uma solução negociada entre o governo e os produtores agrícolas. A primeira foi a demora no seu surgimento. A segunda, a brusca variação de humor da presidente, que na quarta-feira convocou um comício peronista para anunciar que não cederia um milímetro aos fazendeiros, e ao meio-dia de sexta-feira fez um discurso conciliador, caracterizado por expressões de humildade que apenas raramente aparecem no léxico político argentino. Ao que tudo indica, foi por ter “humildemente” pedido aos produtores rurais que, “por favor”, suspendessem o protesto, que foram removidos os 300 bloqueios em estradas e abertas negociações com o governo.

O governo está disposto a conversar com os produtores rurais, mas não dá sinais de que poderá mudar a política econômica. E é aí que está o problema. Há pelo menos dois anos, o governo argentino – que até 10 de dezembro era chefiado por Néstor Kirchner, marido de Cristina – vem tentando esconder a inflação real. No ano passado, a inflação anunciada pelo governo ficou em 8,5%, mas economistas independentes calculam que ela alcançou 25%.

Além de manipular os índices, o governo obrigou grandes redes de comércio varejista a tabelar preços e congelou tarifas de serviços públicos. Está fazendo o que se fez no Brasil na década de 1980, com resultados bem conhecidos. Desabastecimento e queda da qualidade dos serviços, cujas tarifas são congeladas, são os primeiros sinais. Depois, os preços represados explodem.

Há tempos, alguns desses sinais, como a falta de produtos nos supermercados, vinham sendo detectados. Para tentar resolver o problema sem atacar suas causas, o governo criou a “retenção”, um tributo sobre as exportações de grãos, que atinge também a carne e os combustíveis. O objetivo é desestimular a exportação, para assegurar o abastecimento interno.

No último dia 11, a “retenção” foi elevada de 35% para 44,1%. Para a soja, instituiu-se um sistema móvel de tributação: quanto mais alta for a cotação internacional, maior será a alíquota da “retenção”. Mais ainda, se a cotação exceder US$ 580 a tonelada, o governo levará 95% da diferença. Na prática, é um confisco.

Irritados, os produtores rurais de todo o país reagiram com um “locaute”. Organizaram manifestações de protesto e suspenderam a distribuição de seus produtos, bloqueando estradas para impedir sua circulação. Conseguiram montar 300 bloqueios em 29 localidades de 7 províncias, inclusive na de Buenos Aires, que respondem por 80% da produção agrícola argentina.

Na quarta-feira, obtiveram o apoio espontâneo da população de Buenos Aires, que saiu às ruas batendo panelas para protestar contra a política do governo, exigindo que fossem atendidas as reivindicações dos agricultores. A “tropa de choque” do piqueteiro peronista Luiz D’Elia – especializado na organização de “manifestações sociais” com finalidades políticas – foi lançada contra os manifestantes, numa ação que, como afirmou o ex-presidente Raúl Alfonsín em artigo para o jornal Clarín, fez lembrar “tristes episódios que a humanidade sofreu”.

Os protestos dos agricultores, com o apoio maciço da população, são plenamente justificados. Eles sentem na carne os efeitos de uma política disparatada. A maquiagem dos índices de inflação e os controles artificiais de preços, além de agravarem o desabastecimento, problema que atinge diretamente a população, são medidas populistas que impedem que os problemas estruturais da economia sejam corrigidos.

Mas o mais preocupante foi a atitude do governo Kirchner diante da crise. Contra os bloqueios de estradas, açulou os caminhoneiros controlados pelo presidente da CGT, o pelego peronista Hugo Moyano. Contra as donas de casa que faziam o panelaço, o peronismo desaçaimou os piqueteiros profissionais de Luiz D’Elia.

Em momento algum a polícia foi chamada para restabelecer a ordem.

Será isso um sinal de que, com os Kirchners, voltará a prevalecer o gangsterismo sindical dos tempos de Perón?


 Editorial de O Estado de S Paulo 30/3/08